A Ilusão da Média Global
Florianópolis, 18 de agosto de 2025 - Segunda-feira.
Por: Prof. Adm. Esp. Jorge Lima Cardoso
Sou professor da educação técnica e profissional na rede pública catarinense desde 2021 e atuo como docente desde 2007. Ao longo dessa caminhada, vi a sala de aula se transformar — nem sempre para melhor. Entre currículos remodelados, reformas apressadas e promessas de inovação, uma prática tem me preocupado de forma crescente: a adoção da chamada média global como critério de avaliação. O que se apresenta como avanço administrativo, na prática, oculta lacunas sérias na aprendizagem dos estudantes e fragiliza ainda mais a já combalida valorização docente.
No contexto do ensino médio técnico integrado, a Portaria nº 874, de 1º de abril de 2025 (SANTA CATARINA, 2025), estabelece critérios de avaliação e aprovação que, em tese, visam assegurar um padrão técnico rigoroso. No entanto, ao instituir a média global como parâmetro de progressão nos componentes da Formação Geral Básica, permite-se que estudantes sejam promovidos mesmo apresentando desempenho insatisfatório em disciplinas fundamentais, desde que compensem com boas notas em outras áreas. Já nos componentes técnicos específicos, exige-se média mínima de 6,0 em cada disciplina, conforme o Art. 17, §2º. Ainda assim, o §4º autoriza a progressão parcial para o estudante que não atingir essa média, desde que se comprometa a cursar novamente o componente em questão.
O que se propõe como uma medida pedagógica de exceção tem se transformado, na prática, em um mecanismo recorrente de aprovação administrativa, especialmente por meio de recursos deliberados nos Conselhos de Classe. Estes, por sua vez, têm sido frequentemente influenciados pelas Coordenadorias Regionais de Educação (CREs), criando um ambiente propício à homologação de resultados frágeis. Tal prática, conhecida entre os docentes como “canetaço”, vem se repetindo ano após ano, comprometendo a credibilidade da avaliação e o compromisso com o desenvolvimento real dos estudantes.
Embora a adesão oficial à média global esteja prevista a partir de 2025, nós, professores da área técnica, temos manifestado — mesmo que em conversas informais — preocupação com a consolidação definitiva de critérios que, ao nosso ver, ainda apresentam lacunas significativas. Tais fragilidades já se evidenciaram em anos anteriores, quando decisões semelhantes foram aplicadas de forma informal ou institucionalmente induzida. A matemática fria, travestida de equidade, acaba por substituir o compromisso pedagógico autêntico, gerando uma distorção entre o que se normatiza e o que, de fato, se aprende.
Uma leitura mais atenta do Art. 17 da Portaria nº 874/2025 revela tensões estruturais entre os princípios da avaliação formativa — que pressupõe acompanhamento contínuo, devolutivas qualificadas e valorização do processo — e uma lógica de gestão baseada em resultados padronizados. A separação entre a aplicação da média global para a base comum e a exigência de média individual nos componentes técnicos, embora busque preservar o rigor, abre brechas na formação geral e pode levar à certificação de estudantes com competências fragilizadas.
A previsão de progressão parcial, quando não acompanhada de estrutura adequada para recomposição da aprendizagem, configura-se como risco pedagógico concreto. Os §§ 5º e 6º determinam que os componentes reprovados devem ser ofertados em contraturno ou por meio de atividades complementares. Ocorre que essas “atividades complementares” muitas vezes se resumem a orientações genéricas nos conselhos de classe, que culminam em propostas avaliativas frágeis — os já conhecidos “trabalhinhos” —, utilizados mais como estratégias de aprovação do que como instrumentos de aprendizagem real. Além disso, a maioria das escolas carece de infraestrutura, docentes disponíveis e planejamento pedagógico para operacionalizar essas medidas, transferindo injustamente a responsabilidade pelo fracasso ao aluno e ao professor, enquanto o sistema se omite.
O §7º, ao exigir a integralização do estágio curricular obrigatório, reforça positivamente o vínculo entre formação e prática profissional. Contudo, ignora os obstáculos reais enfrentados por estudantes para acessar vagas compatíveis com sua área técnica, especialmente em regiões com baixa densidade empresarial. A exigência de retorno no ano seguinte, embora coerente com os princípios da formação técnica, pode intensificar a evasão e a desmotivação.
Já o §9º escancara uma limitação estrutural importante: a necessidade de realizar manual e provisoriamente o lançamento dos resultados até que o sistema SISGESC seja ajustado. Isso revela o descompasso entre o que se normatiza e o que as escolas de fato conseguem executar, comprometendo a padronização, a eficiência e a transparência dos registros avaliativos.
Em síntese, os critérios de aprovação definidos pela Portaria nº 874/2025 visam construir uma política educacional tecnicamente robusta, mas ignoram as condições reais das escolas, desconsideram a autonomia docente e fragilizam o acompanhamento pedagógico contínuo. O risco é consolidar uma cultura de aprovação formal dissociada da aprendizagem efetiva. Um diploma técnico, para ser social e profissionalmente legítimo, precisa representar não apenas o cumprimento burocrático de cargas horárias e médias mínimas, mas o domínio consistente dos fundamentos práticos e teóricos da formação.
Segundo Luckesi (2011), a avaliação deve estar a serviço da aprendizagem — e não da estatística ou da lógica classificatória. Quando adotamos um modelo que permite ao estudante “passar” sem, de fato, aprender, estamos negando a função formativa da escola.
Esse modelo, vendido como moderno e eficiente, esvazia o sentido da avaliação, transforma o conhecimento em dado numérico e o professor em mero executor de planilhas. Como já alertava Freitas (2014), a lógica da gestão por resultados reduz o ensino a metas, ignorando os sujeitos, os contextos e a complexidade do ato educativo.
A médio prazo, esse sistema contribui diretamente para a formação de jovens despreparados para o mundo do trabalho, com baixa leitura crítica, raciocínio lógico comprometido e domínio técnico superficial. A escola, que deveria formar para a vida, acaba apenas promovendo para o próximo nível — sem garantir o aprendizado necessário.
A média global reforça uma lógica perversa: a do mínimo esforço como via de aprovação, em vez da construção sólida de competências. E essa política atinge principalmente os estudantes da escola pública, muitos dos quais enxergam na educação sua única oportunidade de desenvolvimento e emancipação.
Mais grave ainda é o apagão silencioso que avança na docência: professores sobrecarregados, desmotivados, desvalorizados e esvaziados de autonomia — muitos dos quais já abandonaram a profissão ou pensam seriamente nisso. Como afirma Nóvoa (2009), a crise docente não é apenas de salário, mas de identidade profissional: o professor perde o sentido do seu trabalho quando se vê impedido de refletir, decidir e inovar.
A padronização imposta pelo modelo avaliativo transforma a escola pública em máquina de aprovação estatística, e o professor em agente submisso a metas administrativas. Isso desgasta emocionalmente quem está na linha de frente e colabora para a evasão de profissionais qualificados da rede.
Estamos diante de uma crise múltipla: de avaliação, de identidade docente e de sentido na educação. Não basta maquiar os números. É preciso romper com a lógica do controle, que tenta transformar a escola em empresa e o aluno em consumidor de conteúdo superficial.
O que defendemos é simples e essencial: uma educação que forme sujeitos plenos, com avaliações coerentes, personalizadas, e que realmente reflitam progresso. Uma escola técnica que prepare para o trabalho, sim — mas também para a vida, para o pensamento crítico e para a cidadania. E, sobretudo, professores valorizados como protagonistas desse processo, com voz ativa, condições reais de trabalho e salários dignos.
A média global não é avanço — é retrocesso disfarçado de modernidade. E enquanto os números forem mais importantes que as pessoas, seguiremos entre o giz e o descaso.
É hora de restituir o protagonismo ao professor, recuperar o sentido da avaliação e devolver à escola seu papel formador. Só assim construiremos uma educação pública, técnica e cidadã — que não apenas aprove, mas transforme.
Referências
FREITAS, Luiz Carlos de; FURLAN, Sueli Cristina; GUIMARÃES, Selva. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Disponível em: https://www.academia.edu/32926206/Avalia%C3%A7%C3%A3o_Educacional_caminhando_pela_contra_m%C3%A3o_FREITAS_L_C_et_al_pdf. Acesso em: 29 jul. 2025.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. São Paulo: Cortez, 2011. Disponível em versão parcial: https://irsas.cascavel.pr.gov.br/arquivos/23122013_cipriano_carlos_luckesi_-_avaliaacao_da_aprendizagem_na_escola.pdf. Acesso em: 29 jul. 2025.
NÓVOA, António. Conhecimento profissional docente e formação de professores. Educação & Sociedade, Campinas, v. 40, e192551, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/TBsRtWkP7hx9ZZNWywbLjny. Acesso em: 29 jul. 2025.
SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação. Portaria n° 874, de 1° de abril de 2025. Regulamenta os procedimentos e registros da Avaliação da Aprendizagem da Educação Básica e Profissional da Rede Pública Estadual de Santa Catarina e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, ed. 22484, 2 abr. 2025. Disponível em: https://www.diariodasc.sc.gov.br. Acesso em: 2 ago. 2025.
Sobre o autor:
Jorge Lima Cardoso é administrador e especialista com MBA em Gestão de Pessoas, Licenciatura para Educação Profissional e mais de 15 anos de experiência docente em cursos técnicos e ensino médio. Atua nas áreas de Administração, Contabilidade e Educação Profissional, com formação multidisciplinar e ampla trajetória no magistério.